16 de maio de 2010

olhando o espelho do banheiro


confuso em meio ao labirinto do tempo
olho para trás e surpreso deparo-me
com a figura sentenciosa de eu mesmo
refletido fielmente por um espelho

o veredicto é claro
a areia da ampulheta talha os instantes
anunciados na lápide futura
é a atenciosa artesã
da vida em infinita degradação

observo meu corpo
apalpo o rosto banhado em suor
os fios da barba no queixo e no pescoço
empapam-se e liquefazem
logo torno-me imberbe
um momento depois obtenho longos cabelos
que oleosos refletem a luz
dos trezentos e tantos dias de sol
que me acordam pela manhã

um estrondo de trovão me acordará amanhã
e ventará tanto que as folhas
do álbum de memória voarão feito pombas
aves do espírito-santo
e rebentarão no incerto rochedo
nomeado por algum poeta ancestral
de futuro

não reconheço os olhos infantes à minha frente
enquanto me assusto com o negro fio
de pêlo que desce liso
de minha narina direita
único ente de minha sanidade
fragmento puro da obscenidade

agarro-me a pinça sobre a pia branca
e num movimento isento de delicadeza
arranco o pêlo e arranho
a ponta do nariz cheio de cravos
que sangram melodias odiosas
viscoso líquido invade meus secos lábios
e o gosto agridoce misturado à saliva
me evade em vômito
tufos de cabelos em meus pés
a cabeça agora raspada
beiços inchados de tapas amorosos
minha imagem refrata
em desarmonia de destinos pares

trancado no banheiro
sem perspectivas de sair
sento no vazo gelado da privada
e ponho-me a pensar e cagar
o espelho quebra em pedaços cortantes
que na semana que vem terei que ajoelhar
meu cérebro flamejante tilinta
escorrendo pelo nariz
e formando odiosa poça cor massa-cinzenta
no piso mármore falso
pego o rolo de papel higiênico
limpo o cu e a mente

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