14 de agosto de 2012

O declínio e a queda da economia espetacular-mercantil - Guy Debord



"Entre os dias 13 e 16 de agosto de 1965, a população negra de Los Angeles se levantou. Um incidente entre policiais de trânsito e passantes acabou em dez dias de tumultos espontâneos. Os reforços crescentes das forças de ordem não foram capazes de retomar o controle das ruas. Por volta do terceiro dia, os Negros pegaram em armas, saqueando as lojas acessíveis, de maneira que puderam até disparar contra os helicópteros da polícia. Milhares de soldados e policiais — incluindo o peso militar de uma divisão de infantaria, apoiada por tanques — tiveram que ser mobilizados na luta para encurralar a revolta no bairro de Watts; em seguida, para reconquistá-lo ao custo de numerosos combates de rua que se estenderam por vários dias. Os insurgentes procederam com a pilhagem generalizada das lojas e as incendiaram. Segundo os números oficiais, houve 32 mortos, dos quais 27 Negros, mais de 800 feridos e 3.000 presos.
As reações de todos os lados revestiram-se desta claridade que o evento revolucionário, pois que é em si mesmo um esclarecimento em atos dos problemas existentes, tem sempre o privilégio de conferir às diversas nuances do pensamento de seus adversários. O chefe da polícia, William Parker, recusou toda mediação proposta pelas grandes organizações negras, afirmando precisamente que “estes desordeiros[1] não têm chefes”. E certamente, à medida que os Negros não tinham mais chefes, era chegado o momento da verdade em ambos os lados. O que ansiava, por sua vez, ao mesmo tempo, um dos lideres dos desempregados, Roy Wilkins, secretário geral da National Association for the Advancement of Colored People? Ele declarou que os tumultos “deveriam ser reprimidos fazendo uso de toda força necessária”. E o cardeal de Los Angeles, McIntyre, o qual protestava abertamente, não o fez contra a violência da repressão, como alguém poderia supor conveniente de se praticar no momento de aggiornamento[2] da influência romana; protestava com urgência frente a “uma revolta premeditada contra os direitos de vizinhança, contra o respeito à lei e a manutenção da ordem”; convocando os católicos a se oporem aos saques, à “essa violência sem justificativa”. E todos aqueles que chegaram a ver as “justificativas aparentes” da raiva dos Negros de Los Angeles, mas certamente não a justificativa real, todos os pensadores e “responsáveis” pela esquerda mundial, pelo seu fim, lamentaram a irresponsabilidade e a desordem, a pilhagem e, sobretudo, o fato de que seu momento inicial fosse os saques às lojas contendo álcool e armas, e os 2000 focos de incêndio contados, com os quais os preto-leiros (pétroleurs) de Watts clarearam sua batalha e sua festa. Quem saiu, portanto, em defesa dos insurgentes de Los Angeles, nos termos em que merecem? Nós o faremos. Deixemos os economistas chorarem pelos 27 milhões de dólares perdidos, e os urbanistas por um de seus mais belos supermarkets tornado fumaça, e McIntyre pelo seu assistente de xerife abatido; deixemos os sociólogos se lamentarem pelo absurdo e embriagues nessa revolta. É o papel de uma publicação revolucionária não apenas dar razão aos insurgentes de Los Angeles, mas de contribuir a dar-lhes suas razões, explicar teoricamente a verdade cuja ação prática aqui exprimi a pesquisa.
Na Declaração publicada em Argel no mês de julho de 1965[3], após o golpe de estado de Boumedienne, os situacionistas, os quais expuseram, aos argelinos e aos revolucionários do mundo, as condições na Argélia e no resto do mundo como um todo, mostraram entre seus exemplos o movimento dos Negros americanos que, “caso possa se afirmar com resultado”, desvelará as contradições do capitalismo mais avançado. Cinco semanas mais tarde, este resultado manifestou-se na rua. A crítica teórica da sociedade moderna, no que ela tem de mais nova, e a crítica em atos da mesma sociedade já coexistem, embora separadas, mas igualmente avançadas até a mesma realidade, falando da mesma coisa. As duas críticas se explicam mutuamente, e uma é sem a outra inexplicável. A teoria da sobrevivência e do espetáculo foi esclarecida e verificada por esses atos que são incompreensíveis à falsa consciência americana. Ela, em troca, algum dia os esclarecerá.
Até agora, as manifestações dos Negros pelos “direitos civis” foram mantidas pelos chefes em uma legalidade que tolerava as piores violências das forças de ordem e dos racistas, como no precedente mês de março em Alabama, durante a marcha de Montgomery; e, mesmo depois desse escândalo, um acordo discreto entre o governo federal, o governador Walace e o pastor King, levou a marcha de Selma, no 10 de março, a retroceder frente ao primeiro requerimento policial, com dignidade e oração[4]. O enfrentamento esperado naquele momento pela multidão de manifestantes não fora mais que o espetáculo de um enfrentamento possível. Ao mesmo tempo, a não-violência alcançara o limite ridículo de sua coragem: expor-se aos golpes do inimigo, e depois elevar a grandeza moral até poupar-lhe a necessidade de usar outra vez sua força. O dado básico, porém, é que o movimento pelos direitos civis apenas reivindicou, por meios legais, os problemas legais. É lógico apelar legalmente à lei. Irracional, no entanto, é mendigar legalmente diante da ilegalidade patente, como se fosse algo sem sentido que se dissolveria ao ser apontada com o dedo. É notório que a ilegalidade superficial, descaradamente visível, ainda aplicada aos Negros em muitos estados americanos, tem suas raízes em uma contradição econômico-social que não é do alcance das leis existentes; e que nenhuma lei jurídica futura poderá desfazer, ao contrário das leis mais fundamentais da sociedade em que os Negros americanos finalmente ousam exigir viver. Os Negros americanos querem, na verdade, a subversão total desta sociedade ou nada. E o problema dessa subversão necessária vem à tona assim que os Negros chegam aos meios subversivos; essa passagem a tais meios, porém, surge em suas vidas cotidianas, como o que há de mais acidental e de mais objetivamente justificado. Não é mais a crise do estatuto dos Negros na América; é a crise do estatuto da América, colocada primeiramente entre os Negros. Não houve conflito racial: os Negros não atacaram os Brancos que estavam no caminho, mas apenas os policiais brancos; e a mesma comunidade negra não se estendeu aos proprietários negros de lojas, tampouco aos motoristas negros. O próprio Luther King foi obrigado a admitir que os limites de sua especialidade foram ultrapassados, ao declarar, em outubro na cidade de Paris, que “não se tratava de tumultos raciais, mas de classe”.
 “A América debruçou-se imediatamente sobre esta nova ferida. Por vários meses, sociólogos, políticos, psicólogos, economistas, especialistas de todos os gêneros sondaram sua profundidade… Não há mais um ‘bairro’[5] no sentido próprio do termo, mas uma planície desesperadamente extensa e monótona… ‘América em um plano’, toda em largura; isso que uma paisagem americana pode ter de mais melancólico, com suas casas de teto plano, suas lojas que vendem todas as mesmas coisas, seus vendedores de ‘hambúrgueres’, suas lojas de conveniência, todas degradadas pela pobreza e pela classe… A circulação de automóveis é menos densa do que em outro lugar, mas a dos pedestres quase não é maior, tão dispersas parecem as habitações e as distancias desencorajadoras… A passagem dos Brancos atrai todos os olhares, olhares nos quais se lê senão o ódio, ao menos o sarcasmo (‘Mais desses pesquisadores ou sociólogos que vêem procurar as explicações ao invés de nos conseguir trabalho’, se escuta freqüentemente). Quanto ao alojamento, pode-se sem dúvida melhorá-lo materialmente, mas quase não se vê como será possível impedir os Brancos de fugir em massa de um bairro, assim que os Negros começarem a se instalar. Esses últimos continuarão a sentir-se abandonados à própria sorte, sobretudo nessa cidade desmesurada que é Los Angeles, desprovida de centro, sem sequer multidão onde se fundir, onde os Brancos apenas entrevêem seus semelhantes através do pára-brisa de seus carros… Enquanto o pastor Martin Luther King, alguns dias mais tarde, discursava em Watts e pedia a seus irmãos de cor para ‘dar as mãos’, alguém gritou da massa: ‘Para queimar…’ É um espetáculo reconfortante ver a certa distância de Watts os bairros ditos de ‘classe média’ onde os Negros da nova burguesia aparam sua grama em frente às residências de alto luxo”.
Michel Tatu (Le Monde, 3-11-65)

A revolta de Los Angeles é uma revolta contra a mercadoria, contra o mundo da mercadoria, e do trabalhador-consumidor hierarquicamente submisso aos padrões da mercadoria. Os Negros de Los Angeles, como os bandos de jovens delinqüentes de todos os países avançados, embora mais radicalmente, pois se trata de uma classe social globalmente sem porvir, de uma parte do proletariado que não pode acreditar em quaisquer hipóteses extraordinárias de promoção e integração, tomam ao pé da letra a propaganda do capitalismo moderno, sua publicidade da abundância. Eles querem possuir imediatamente todos os objetos expostos e abstratamente disponíveis, porque querem usá-los. Desta maneira, recusam o valor de troca, a realidade mercantil que é seu molde, a motivação e o fim último, e que tudo selecionou. Por meio do roubo[6] e do presente, reencontraram um uso que, de pronto, nega a racionalidade opressiva da mercadoria, o qual faz aparecer suas relações e sua fabricação inclusive como arbitrárias e não-necessárias. Os saques do bairro de Watts manifestaram a realização mais sumária do princípio bastardo: “Cada qual segundo suas falsas necessidades”, as necessidades determinadas e produzidas pelo sistema econômico que os saques precisamente rejeitam. Mas, uma vez que essa abundância é levada ao pé da letra, retomada de imediato, e não mais indefinidamente perseguida no transcurso do trabalho alienado e no aumento das necessidades sociais diferidas, os verdadeiros desejos se experimentam já na festa, na afirmação lúdica, no potlatch de destruição[7]. O homem que destrói as mercadorias demonstra sua superioridade humana sobre aquelas. Ele não permanecerá prisioneiro das formas arbitrárias que revestiam a imagem de sua necessidade. A passagem do consumo à consumação realizou-se sob as chamas de Watts[8]. As grandes geladeiras roubadas pelas pessoas que não possuíam eletricidade, ou que tinham a corrente cortada, é a melhor imagem da mentira da abundância tornada verdade em ação. A produção mercantil, assim que deixa de ser comprada, transforma-se em criticável e modificável em todas as suas formas particulares. Apenas quando paga com dinheiro, qual símbolo de um grau na sobrevivência, ela torna-se respeitada como um fetiche admirável.
A sociedade da abundância encontra sua resposta natural nos saques, contudo não é de nenhuma maneira abundância natural e humana, e sim de mercadorias. E os saques, que fazem instantaneamente desmoronar a mercadoria como tal, mostram também a última ratio daquela: a força, a polícia e os outros destacamentos especiais que possuem no Estado o monopólio da violência armada. O que é um policial? É o servidor ativo da mercadoria, o homem totalmente submisso a esta, pela ação do qual tal produto do trabalho humano permanece uma mercadoria, cuja vontade mágica é de ser paga, e não vulgarmente uma geladeira ou um fuzil, algo cego, passivo, insensível, que é submisso ao primeiro que chegue para usá-lo. Por trás da indignidade que há em depender do policial, os Negros rejeitam a indignidade que há em depender da mercadoria. A juventude sem porvir mercantil de Watts escolheu uma outra qualidade do presente, e a verdade desse presente foi irrecusável a ponto de arrastar toda população, as mulheres, as crianças, e até os sociólogos presentes no local. Uma jovem socióloga negra daquele bairro, Bobbi Hollon, declarou em outubro ao Herald Tribune: “As pessoas, antes, tinham vergonha de dizer que vinham de Watts. Elas o resmungavam. Agora o dizem com orgulho. Rapazes que ostentavam sempre as camisas abertas até a cintura e que lhe fariam picadinho em meio segundo chegam aqui às sete horas. Eles organizam a distribuição da comida. Claro, não se deve criar ilusões, haviam-na roubado… Todo esse blá-blá-blá cristão foi utilizado contra os Negros por muito tempo. Essa gente podia saquear por dez anos e não recuperaria metade do dinheiro que lhes roubaram nessas lojas por todos esses anos… Quanto a mim, sou apenas uma garota negra.” Bobbi Hollon, que decidiu jamais lavar o sangue que manchou suas alpargatas durante os tumultos, disse que “agora o mundo inteiro observa o bairro de Watts”.
Como os homens fazem a história, a partir das condições preestabelecidas para dissuadir-lhes de intervir? Os Negros de Los Angeles são melhor pagos que todos os outros dos Estados Unidos, mas estão ainda mais separados da riqueza máxima que se exibe precisamente na Califórnia. Hollywood, o pólo do espetáculo mundial, está na vizinhança imediata. Prometem-lhes que ascenderão, com paciência, à prosperidade americana, no entanto eles vêem que essa prosperidade não é uma esfera estável, mas uma escalada sem fim. Quanto mais sobem, mais se distanciam do topo, porque são desfavorecidos logo de saída, são menos qualificados, portanto mais numerosos entre os desempregados, e finalmente porque a hierarquia que lhes esmaga não é apenas aquela do poder aquisitivo como fato econômico puro: mas também se trata de uma inferioridade que lhes impõem em todos os aspectos da vida cotidiana, os costumes e os preconceitos de uma sociedade na qual todo poder humano está alinhado com o poder aquisitivo. Da mesma maneira que a riqueza humana dos Negros americanos é detestável e considerada criminal, a riqueza econômica não pode fazê-los completamente aceitáveis na alienação americana: a riqueza individual fará apenas um negro rico, porque os Negros como um todo devem representar a pobreza em uma sociedade de riqueza hierarquizada; Todos os observadores escutaram esse grito que clamava pelo reconhecimento universal do sentido do levante: “Esta é a revolução dos Negros, e queremos que o mundo todo o saiba” Freedom now[9] é a senha de todas as revoluções da história; mas, pela primeira vez, não se trata da miséria, ao contrário, é a abundância material que se trata de dominar segundo novas leis. Dominar a abundância não é, portanto, somente modificar a distribuição, mas redefinir todas as orientações superficiais e profundas. É o primeiro passo de uma luta imensa, de um alcance infinito.
Os Negros não estão isolados em sua luta porque uma nova consciência proletária (a consciência de não ser em nada o dono de sua atividade, de sua vida) começa na América em camadas que recusam o capitalismo moderno, e, por esta razão, assemelham-se a eles. A primeira fase da luta dos Negros, justamente, foi o sinal de uma contestação que se estende. Em dezembro de 1964, os estudantes de Berkeley, oprimidos em sua participação no movimento dos direitos cívicos, vieram a fazer uma greve que questionava o funcionamento desta “multiversidade”[10] da Califórnia e, através disto, toda a organização da sociedade americana, bem como o papel passivo que se lhes destina lá. Imediatamente se descobre na juventude estudantil as orgias de bebida ou de drogas e a dissolução da moral sexual que se vinculava aos Negros. Esta geração de estudantes então inventou uma primeira forma de luta contra o espetáculo dominante, o teach in, e esta forma foi retomada em 20 de outubro na Grã-Bretanha, na universidade de Edimburgo, em razão da crise da Rodésia[11]. Esta forma, evidentemente primitiva e impura, é o momento da discussão dos problemas, que recusa a se limitar no tempo (academicamente); ela assim procura ser conduzida até o final, e este fim naturalmente é a atividade prática. Em outubro dezenas de milhares de manifestantes aparecem na rua, em Nova Iorque e em Berkeley, contra a guerra no Vietnã, e eles entram em conjunto com os gritos dos desordeiros de Watts: “Saiam de nosso bairro e do Vietnã!” Nos Brancos que se radicalizam, a famosa fronteira da legalidade é ultrapassada: dá-se “cursos” para aprender a fraudar os Conselhos de Revisão (Le Monde, 19 de outubro de 1965), queimam-se perante a TV papéis militares. Na sociedade da abundância exprime-se o desgosto desta abundância e de seu preço. O espetáculo é sufocado pela atividade autônoma de uma camada avançada que refuta seus valores. O proletariado clássico, na medida mesma em que se pôde provisoriamente integrá-lo ao sistema capitalista, não havia integrado os Negros (muitos sindicatos de Los Angeles negaram os Negros até 1959); e agora os Negros são o pólo de unificação para tudo o que refuta a lógica desta integração ao capitalismo, nec plus ultra de toda integração prometida. E o conforto não será jamais suficientemente confortável para satisfazer aqueles que procuram o que não está no mercado, o que o mercado precisamente elimina. O nível atingido pela tecnologia dos mais privilegiado se torna uma ofensa, mais fácil de exprimir que a ofensa essencial da reificação. A revolta de Los Angeles é a primeira da história que pôde por vezes justificar a si mesma argüindo pela falta de ar-condicionado durante uma onda de calor.


Os Negros têm na América seu próprio espetáculo, sua imprensa, suas revistas e suas vedetes coloridas, e assim eles o reconhecem e o vomitam como espetáculo falacioso, como expressão de sua indignidade, porque eles o vêem como minoritário, simples aprendiz de um espetáculo geral. Eles reconhecem que este espetáculo de sua consumação desejável é uma colônia daquele dos Brancos, e vêem, portanto, mais depressa a mentira de todo o espetáculo econômico-cultural. Eles reivindicam, querendo efetiva e imediatamente participar à abundância, que é o valor oficial de todo Americano, a realização igualitária do espetáculo da vida cotidiana na América e a prova real dos valores semi-celestes, semi-terrestres deste espetáculo. Mas está na essência do espetáculo não ser realizável imediatamente nem igualitariamente mesmo para os Brancos (os Negros fazem justamente função de precaução espetacular perfeita desta desigualdade estimulante na corrida à abundância). Quando os Negros exigem tomar à risca o espetáculo capitalista, eles relançam o próprio espetáculo. O espetáculo é uma droga para escravos. Ele não permite ser tomado à risca, mas seguido em um ínfimo grau de retardo (se não há mais retardo a mistificação aparece). De fato, nos Estados Unidos, os Brancos são hoje os escravos da mercadoria e os Negros seus refutadores. Os Negros querem mais que os Brancos: eis o coração de um problema irresolúvel, ou resolúvel somente com a dissociação desta sociedade branca. Também os Brancos que querem sair de sua própria escravidão devem aderir antes à revolta negra, não como afirmação de cor evidentemente, mas como negação universal à mercadoria, e finalmente do Estado. O intervalo econômico e psicológico dos Negros em relação aos Brancos permite-lhes ver o que é o consumidor branco e o justo desprezo que eles têm deste se torna desprezo a todo consumidor passivo. Também os Brancos que rejeitam este papel não têm chance a não ser unificando sempre mais sua luta com aquela dos Negros, e ao encontrar a si mesmos e apoiar até o fim as razões coerentes. Se sua confluência se separasse diante da radicalização da luta, um nacionalismo negro se desenvolveria, o qual condenaria cada lado ao afrontamento segundo os mais velhos modelos da sociedade dominante. Uma série de extermínios recíprocos é o outro termo da alternativa presente, quando a resignação não pode mais continuar.
As tentativas de nacionalismo negro, separatista ou pró-africano, são sonhos que não podem responder à opressão real. Os Negros americanos não têm pátria. Eles estão, na América, em casa e alienados, como os outros Americanos, mas eles sabem o que são. Assim, não são o setor atrasado da sociedade americana, mas são o setor mais avançado. Eles são o negativo em obra, “o lado mau que produz o movimento que faz a história continuando a luta” (Miséria da Filosofia). Não há África para isto.
Os Negros americanos são produto da indústria moderna do mesmo modo que o eletrônico, a publicidade e o acelerador de partículas. Eles possuem suas contradições. Eles são os homens que o paraíso espetacular deve, a cada vez, integrar e impulsionar de sorte que o antagonismo do espetáculo e da atividade dos homens se admite completamente a seu propósito. O espetáculo é universal como a mercadoria. Mas o mundo da mercadoria por estar fundado em uma oposição de classes faz com que a mercadoria seja ela mesma hierárquica. A obrigação à mercadoria é, portanto, o espetáculo que informa o mundo da mercadoria, de ser em uma só vez universal e hierárquica rumo a uma hierarquização universal. Mas pelo fato de que esta hierarquização deve quedar inconfessada, ela se traduz em valorizações hierárquicas inconfessáveis, porque são irracionais, em um mundo da racionalização sem razão. É esta hierarquização que cria os racismos por toda parte: A Inglaterra trabalhista acaba de restringir a imigração das pessoas de cor, os países industrialmente avançados da Europa retornam a ser racistas ao importar seu sub-proletariado da zona mediterrânea, explorando seus colonizados no interior. E a Rússia não cessa de ser anti-semita porque ela não cessou de ser uma sociedade hierárquica em que o trabalho deve ser vendido como uma mercadoria. Com a mercadoria, a hierarquia se recompõe sempre sob formas novas e se estende; que seja entre o dirigente do movimento operário e os trabalhadores ou mesmo entre portadores de dois modelos de automóveis artificialmente distintos. É a tara original da racionalidade mercadológica a doença da razão burguesa, doença hereditária na burocracia. Mas a absurdidade revoltante de certas hierarquias, e o fato de que toda força do mundo da mercadoria se porte cegamente e automaticamente em sua defesa, leva a ver, desde que começa a prática negativa, o absurdo de toda hierarquia.
O mundo racional produzido pela revolução industrial libertou racionalmente os indivíduos de seus limites locais e nacionais, ligou-os à escala mundial; mas sua desrazão está em separar-lhes de novo segundo uma lógica fechada que se exprime em idéias loucas e em valorizações absurdas. O estrangeiro rodeia em toda parte o homem advindo estrangeiro a seu modo. O bárbaro não está mais nos confins da Terra, ele está aqui, constituído em bárbaro precisamente por sua participação obrigada ao mesmo consumo hierarquizado. O humanismo que encobre isto é o contrário do homem, a negação de sua atividade e de seu desejo; é o humanismo da mercadoria, a benevolência da mercadoria ao homem que ela parasita. Para aqueles que reduzem homens a objetos, os objetos parecem ter todas as qualidades humanas, e as manifestações humanas reais se transformam em inconsciência animal. “Eles passaram a se comportar como um bando de macacos em um zoológico”, pode dizer William Parker, chefe do humanismo de Los Angeles.
Quando “o Estado de insurreição” foi proclamado pelas autoridades da Califórnia, as companhias de seguro lembraram que elas não cobrem os riscos a estes níveis: além da sobrevivência. Os Negros americanos, globalmente, não são ameaçados em sua sobrevida — ao menos se permanecerem tranqüilos — e o capitalismo se tornou suficientemente concentrado e imbricado no Estado para distribuir “seguros” aos pobres. Mas, na condição de que eles sempre estão atrás na argumentação da sobrevida socialmente organizada, os Negros possuem os problemas da vida, é a vida que eles reivindicam. Os Negros não possuem nada a garantir que lhes seja próprio; eles têm a destruir todas as formas de seguridade e de seguros privados conhecidos até aqui. Eles aparecem como o que são na verdade: os inimigos irreconciliáveis, não certamente da grande maioria dos americanos, mas do modo de vida alienado de toda a sociedade moderna: o país mais avançado industrialmente não faz nada além de nos mostrar o caminho que será seguido em todos os lugares, se o sistema não for derrubado.
 “As milícias populares estremeceram em frente aos tanques e metralhadoras nos bairros norte de São Domingo. Após quatro dias e quatro noites de combates sangrentos e violentos, as tropas do general Imbert finalmente conseguiram avançar até as proximidades da avenida Duarte e do mercado Villa-Consuelo. Às 6 horas da manhã, quarta-feira, o estabelecimento Rádio-Santo-Domingo foi tomado de assalto. Este prédio, que abriga também a televisão, encontra-se a 200 metros ao norte da avenida Francia e do corredor tido pelos ‘marines’. Ele fora bombardeado na última quinta-feira pelos caças do general Wessin… Combates esporádicos permaneceram por toda quarta-feira na região nordeste da cidade, mas a resistência popular acaba de sofrer sua primeira derrota… Os civis foram abatidos praticamente sozinhos, pois poucos militares que haviam aderido ao movimento do coronel Camano estavam localizados ao norte do corredor. As milícias, neste setor, são principalmente formadas por operários pertencentes ao Movimento Popular Dominicano, uma organização de esquerda. Seu sacrifício já terá valido o ganho de cinco dias, que podem ser preciosos para o levante de 24 de abril…
Na cidade baixa, levantam-se barragens de recipientes de óleo assaz irrelevantes que se tinham por barricadas, ou se toma proteção atrás de caminhões de carga tombados. As armas são disparates. As vestimentas também. Observam-se civis de capacetes redondos e baixos, e militares de boinas… Os revólveres enchem os bolsos dos jeans dos trabalhadores e dos estudantes. Todas as mulheres decididas a combater vestem calças… Os meninos de dezesseis anos seguram tenazmente seus fuzis contra o peito como se estivessem esperando este presente desde o início do mundo. Sem parar, a Rádio-São-Domingo faz apelos ao povo. Reivindica-se-lhes a se dirigir em massa para determinado ponto da cidade onde se espera um ataque de Wessin… É lá, na abertura da ponte Duarte e no cruzamento da avenida do Lieutenant-Amado-Garcia, que a multidão se reúne com coquetéis molotov à mão. Ela vem da cidade baixa e também dos quarteirões norte. Aparece por vezes insaciável e determinada. Quando os caças de Wessin surgem em rasante no eixo da ponte, milhares de punhos se levantam com furor contra os aparelhos. Depois dos barulhos das cadências de tiro, dezenas de corpos caem contorcidos ao solo, e a multidão espalha-se para as casas. Mas ela reaparece e a cada passagem das máquinas suscita a mesma explosão de cólera impotente e de derrota insana e deixa uma nova linha de cadáveres. Mas parece verdadeiramente que se deveria matar toda esta cidade para fazê-la sair da ponte Duarte. Na segunda-feira de 26 de abril pela manhã, o embaixador Tapley Bennet Jr. voltou da Flórida. Pela noite o ‘navio de assalto’ SS Boxer com quinhentos ‘marines’ a bordo chega em frente a São Domingo.”
Marcel Niedergang, em Le Monde de 21-5-65 e de 5-6-65.

Certos extremistas do nacionalismo negro, para demonstrar que somente aceitam um Estado separado, difundiram o argumento de que a sociedade americana, mesmo ao reconhecer-lhes um dia toda a igualdade cívica e econômica, não chegaria nunca, ao nível do indivíduo, a aceitar o casamento inter-racial. Deve, portanto, esta sociedade americana desaparecer, na América e em todos os lugares do mundo. O fim de todo preconceito racial, como o fim de tantos outros preconceitos ligados às inibições, em matéria de liberdade sexual, será evidentemente para além do “casamento” ele mesmo, para além da família burguesa, fortemente abalada entre os Negros americanos, que reina tanto na Rússia como nos Estados Unidos, como modelo de referência hierárquico e de estabilidade de um poder herdado (dinheiro ou grade sócio-estática). Diz-se correntemente desde certo tempo que a juventude americana, após trinta anos de silencio, surgiu como força de contestação e que ela acaba de encontrar sua guerra da Espanha na revolta negra. É necessário que, desta vez, estes “batalhões Lincoln” compreendam todo o sentido da luta em que se comprometem e mantenham-na com tudo o que ela tem de universal. Os “excessos” de Los Angeles não são mais um erro político dos Negros, da mesma forma que a resistência armada do POUM[12] em Barcelona em maio de 1937 não foi uma traição da guerra anti-franquista. Uma revolta contra o espetáculo situa-se no nível da totalidade porque — do contrário somente seria produzida singularmente no distrito de Watts — é um protesto do homem contra a vida inumana; porque ela começa ao nível do único indivíduo real e porque a comunidade, da qual o indivíduo revoltado é separado, é a verdadeira natureza social do homem, a natureza humana: a ultrapassagem positiva do espetáculo."


[1] O termo em francês émeutier significa aquele que se revolta sem, contudo, estar associado a um movimento organizado, seja uma manifestação ou uma revolução. Poderia ser tomado no sentido pejorativo de baderneiro, mas muito mais interessante, neste contexto, é considerá-lo em sua pejoração, porém com um sentido irônico. (N.T.)
[2] Em italiano no original. Diminuição. (N.T.)
[3] O texto ao qual o autor faz referência é “Adresse aux révolutionnaires d’Algérie et de tous les pays”, distribuído clandestinamente em Argel, 1965, e publicado na revista Internationale Situationniste  n°10. (N.T.)
[4] As marchas de Selma para Montgomery, as quais incluem o “domingo sangrento”, foram três marchas que marcaram o ápice político do Movimento pelos Direitos Civis. Foram a conseqüência do Movimento pelo Direito ao Voto na cidade de Selma, Alabama, encabeçado por Amelia Boynton Robinson. Ela trouxe muitos líderes proeminentes, à época, do Movimento pelos Direitos Civis àquela cidade, dentre os quais: Martin Luther King Jr., Jim Bevel e Hosea Williams. O domingo sangrento ocorreu em 7 de março de 1965, quando mais de 600 manifestantes, ao atravessarem a ponte Edmund Pettus sobre o rio Alabama, foram brutalmente atacados pela polícia com gás lacrimogêneo, chicotes e cassetetes. O recuo ao qual Debord se refere ocorrera, segundo John Lewis, aliado de King, provavelmente no dia 9 de março, quando, novamente, em face da polícia estadual, os manifestantes pararam, ajoelharam-se no ponto onde antes haviam sido espancados, e esperaram uma ordem judicial que lhes permitisse marchar de Selma a Montgomery. (N.T.)
[5] Quartier, no original, pode-se referir tanto a bairro quanto a quartel. (N.T.)
[6] Vol, no original, significa, ao mesmo tempo, vôo e roubo. (N.T.)
[7] O potlatch é uma cerimônia com caráter festivo, no decurso da qual um chefe oferece ostensivamente uma quantidade enorme de riquezas a um rival, para humilhá-lo ou desafiá-lo. A pratica do potlatch foi encontrada um pouco por todo o lado nas tribos primitivas, sob formas variadas. Os etnólogos observaram que o potlatch consiste muitas vezes numa destruição espetacular de enormes riquezas. O potlatch atraiu profundamente os surrealistas e as correntes da vanguarda artística revolucionária como negação da troca mercantil, fundamento das sociedades modernas, e como expressão do dom desinteressado que propicia o estabelecimento de relações humanas livres. (N.T.)
[8] O autor faz um pequeno jogo ao trocar apenas uma letra da palavra consommation (consumo) para chegar a consummation (consumação). (N.T.)
[9] Em inglês no original, significando “Liberdade agora”. (N.T.)
[10] Manteve-se o neologismo de Debord multiversité em detrimento de outros vocábulos, como pluralidade, pluralismo ou ainda multi-diversidade tendo em vista que multiversidade, além de trazer o sentido de múltiplo, pode contrapor-se à universidade. (N.T.)
[11] Rodésia era o antigo nome dado às possessões britânicas que atualmente formam o Zimbábue e Zâmbia. (N.T.)
[12] Partido Obrero de Unificación Marxista. Participou na resistência ao golpe de Franco na Espanha, de 1936 à 1939. (N.T.)

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